Como as cidades-esponja podem ajudar a prevenir enchentes

Experiência chinesa que usa soluções baseadas na natureza ganha destaque após devastação de áreas urbanas por chuvas extremas, como a do Sul do país.

Frances Jones, da Revista Pesquisa FAPESP

Parque de Manguezais de Sanya, na localidade chinesa de mesmo nome: projeto do arquiteto Kongjian Yu, um dos idealizadores do conceito de cidades-esponja

Kongjian Yu / Turenscape

Como proteger as cidades, que abrigam a maioria da população do planeta, dos eventos climáticos extremos, previstos para aumentar em número e intensidade com o aquecimento global? Da China, uma resposta aos desafios relacionados à água – seja excesso ou falta – vem com o sugestivo nome de cidade-esponja. Um programa de governo local baseado nesse conceito foi lançado no fim de 2014, depois de grandes enchentes assolarem Beijing, a capital chinesa, dois anos antes. Uma de suas metas era reter localmente entre 70% e 90% da média anual das águas da chuva aplicando tecnologias e princípios da chamada infraestrutura verde e do desenvolvimento urbano de baixo impacto (LID).

Veja também:
Kongjian Yu: “É possível transformar um município em uma cidade-esponja em cinco anos”

Desenhado para prevenir inundações, melhorar a qualidade da água e aliviar os impactos das ilhas de calor urbanas, o projeto abrange atualmente 30 cidades-esponja-piloto no país asiático, entre elas Beijing, Xangai, Sanya e Wuhan. A ideia é que o sistema de drenagem urbana funcione como uma esponja, absorvendo, armazenando e purificando a água das chuvas para que depois possa ser reutilizada.

Muitas das soluções empregadas nessas localidades (ver infográfico abaixo) são inspiradas em elementos de sistemas conhecidos há tempos por nomes diferentes em outros países: LID, nos Estados Unidos e no Canadá; sistemas de drenagem urbana sustentável (Suds ou SusDrain), no Reino Unido e em outras nações europeias; e design urbano sensível à água (WSUD), na Austrália e na Nova Zelândia, como observaram pesquisadores chineses em artigo científico publicado em 2017 na revista Water.

Esses termos, dispositivos e práticas foram reunidos na literatura sob o guarda-chuva da infraestrutura verde – em oposição à infraestrutura cinza, do concreto, cimento e asfalto. Mais recentemente, passaram a ser designados como soluções baseadas na natureza (SbN). Já o conceito cidade-esponja, formulado na China, ganhou força a partir dos anos 2010. Todos eles mimetizam elementos da natureza ou trazem a natureza para dentro da infraestrutura urbana, como explica um grupo de autores estrangeiros em trabalho divulgado no periódico Urban Water Journal, em 2015.

Um ponto em comum entre essas tecnologias é que elas confrontam o paradigma de drenagem urbana que vigorou ao longo do século XX, que era o de afastar a água rapidamente dos terrenos urbanizáveis. “Como solução baseada na natureza, as cidades-esponja se contrapõem à maneira histórica como o urbanismo se relacionou com as águas”, diz a urbanista Raquel Rolnik, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

“A proposta do urbanismo desde o fim do século XIX e, sobretudo, no século XX é de um urbanismo contra as águas. Há uma tentativa de afastar a presença delas da cidade. Com isso, investe-se em sistemas de canalização de rios, aterramento de várzeas, enterramentos de canais e drenagem subterrânea. É uma estratégia de ganhar o máximo possível de terrenos para lotear, que impermeabiliza áreas urbanas”, afirma a pesquisadora, prefeita do campus Butantan da USP, na capital paulista.

A resposta chinesa, que toma forma nas 30 cidades-piloto, ganhou notoriedade após sua implementação. “O exemplo das cidade-esponja mostra que é possível adotar um desenho sustentável de drenagem urbana”, defende o arquiteto paisagista e urbanista Paulo Pellegrino, da FAU-USP, estudioso das melhores práticas para controle de enchentes e águas pluviais urbanas e autor de vários artigos sobre o tema.

“Os projetos do Kongjian Yu, um dos pioneiros das cidades-esponja, e de outros especialistas chineses mostraram que dá para implantar essas intervenções, superando as críticas de que não haveria espaço para isso”, diz Pellegrino. “Onde havia rios canalizados, Yu trabalhou para recriar margens com banhados, várzeas, áreas úmidas e de transição. Além de reduzir a velocidade de escoamento, criou espaço para o espraiamento das águas.”

Os idealizadores do conceito de cidade-esponja uniram os conhecimentos tradicionais milenares dos camponeses que lidavam com as águas, como o terraceamento (construção de terraços em áreas de vertentes de montanhas para evitar a erosão do solo), às novas tecnologias do Ocidente para desenvolver seus projetos.

Em entrevista concedida à Pesquisa FAPESP, Yu destacou que mesmo uma metrópole como São Paulo poderia ser transformada em uma cidade-esponja, mas faz uma ressalva. “É preciso resolver o problema das inundações em duas escalas: na urbana e no nível regional. São necessários os sistemas de esponja urbano e o de esponja regional na gestão das bacias hidrográficas”, pondera o especialista, fundador da Faculdade de Arquitetura e Paisagismo da Universidade de Pequim e presidente do escritório Turenscape.

“Se as autoridades públicas estão determinadas a resolver o problema, um governo forte e organizado pode transformar o município em uma cidade-esponja resiliente à água em cinco anos [ver íntegra da entrevista aqui]”, defende Yu.

Kongjian Yu / TurenscapeVia Fenghuang: rodovia de 12 quilômetros na província chinesa de Hainan ganhou soluções baseadas na natureza idealizadas por YuKongjian Yu / Turenscape

Desafios e limitações
Com ou sem o selo de cidade-esponja, experiências com soluções baseadas na natureza para a questão da drenagem das águas pluviais têm se proliferado pelo mundo. Copenhague, na Dinamarca, Malmö, na Suécia, a cidade-estado de Singapura, Portland, nos Estados Unidos, Amsterdã, nos Países Baixos, já adotam elementos do gênero para lidar com as águas.

A maioria dos textos científicos que usam o termo cidade-esponja é escrita por pesquisadores chineses, como indicado por um artigo de revisão sistemática da literatura publicado há dois anos por um grupo da Universidade de Pernambuco em Research Society and Development. Entre os 25 artigos analisados, 19 haviam sido realizados na China. A resiliência às inundações foi a maior contribuição encontrada nas cidades estudadas, apontou o trabalho.

Os desafios e as limitações do modelo, porém, também são discutidos. Um artigo de revisão divulgado em Water Science & Technology, em 2023, mostra que 19 das 30 cidades-piloto da China registraram inundações após a implementação das soluções. “Cidade-esponja, LID e outros sistemas de manejo alternativo das águas pluviais não podem ser tratados como um modelo que se adapta a todo o mundo, uma vez que dependem das características fisiológicas da reservação [da água] em questão, do clima regional e dos parâmetros hidráulicos e hidrológicos”, ressaltam os autores.

Os pesquisadores mencionam que é mais fácil implementar o modelo em localidades mais novas, em comparação às estabelecidas há mais tempo, por essas terem menos terrenos vazios. Até mesmo a parceria público-privada estimulada na China durante a construção das cidades-esponja é questionada, já que a participação do setor privado permanece insignificante, segundo o estudo.

Muitos desafios apareceram depois das obras prontas, resultado de erros durante a construção, como a adoção do tipo errado de vegetação, ou dificuldades de manutenção. “As cidades-esponja não são uma solução mágica capaz de eliminar as inundações ou lidar com qualquer precipitação intensa, mas podem adiar o pico de fluxo e diminuir a sua intensidade”, afirmam os autores do artigo.

Léo Ramos Chaves / Revista Pequisa FAPESPTelhado verde em prédio da avenida Paulista e jardim de chuva no bairro de Pinheiros, ambos em São PauloLéo Ramos Chaves / Revista Pequisa FAPESP

Enxurradas e piscinões
Uma cidade-esponja, explica Pellegrino, da FAU, parte do princípio de que uma bacia hidrográfica apresenta três comportamentos distintos ao longo de sua extensão. O primeiro acontece na divisa da bacia, nas cabeceiras, onde a água começa a escorrer. “Nesse ponto, é preciso adotar estratégias para reter a água na fonte, como, por exemplo, a construção de jardins de chuva, lagoas pluviais e pisos permeáveis”, diz.

Depois, há as encostas da bacia, onde as águas vão descendo para o fundo do vale. “Nessas regiões intermediárias é preciso reduzir a velocidade do escoamento. É possível usar biovaletas, canteiros pluviais e muita vegetação.”

Por fim, é preciso criar espaços para acomodar as águas que chegam ao ponto mais baixo, onde originalmente estavam as várzeas. “Porto Alegre e o Vale do Taquari estão justamente nesse local. É preciso pensar em estruturas e espaços para receber essa água. Isso não é novidade. Parece que sofremos de uma amnésia coletiva”, diz Pellegrino, referindo-se ao predomínio atual da infraestrutura cinza das cidades.

A mudança do paradigma de drenagem da água, segundo especialistas, vem se dando há cerca de 30 ou 40 anos, com a percepção de que o modelo usado nas décadas passadas não resolveria a questão das grandes chuvas. A resposta hegemônica primeira, afirmam, foi a criação de piscinões, grandes reservatórios urbanos cobertos ou não, com o objetivo de reter as águas dos temporais. Mas essas estruturas, comuns em São Paulo, apresentaram limitações funcionais e urbanísticas, afirmam.

“Um dos processos mais perigosos relacionados à água da chuva em encostas é a enxurrada, que é a água descendo o morro em alta velocidade. Os piscinões não resolvem isso, porque ficam em fundos do vale”, ressalta a arquiteta e urbanista Luciana Travassos, da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Eles são percebidos como fraturas urbanas de complexa articulação com as demais infraestruturas das cidades”, diz a pesquisadora.

Travassos coordena o projeto Territórios da Água, que propõe a elaboração de um programa de conservação e recuperação de áreas de preservação permanente (APPs) no município de São Paulo. Apoiado pelo Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP, o trabalho tem parceria da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente do município de São Paulo e do Observatório Nacional dos Direitos à Água e do Saneamento (Ondas).

A maior parte das APPs paulistanas abrange uma faixa de proteção de 30 metros de cada margem dos rios e cursos d´água, diz a especialista. O projeto proposto por seu grupo, iniciado em fevereiro, inclui o uso de SbN nas áreas ao longo dos rios e córregos da cidade. Prevê também o estudo das políticas adotadas para as áreas de preservação permanente nas duas últimas décadas. Os pesquisadores querem avaliar como os rios e as suas margens foram tratados nas políticas públicas municipais, bem como suas características, se há assentamentos precários, loteamentos e outras infraestruturas ocupando as APPs, o que condiciona as possibilidades de intervenção. “A partir daí, vamos elaborar critérios de priorização e gestão, com base na justiça ambiental, e definir uma bacia-piloto para trabalhar”, informa Travassos.

Especialistas brasileiros têm desenvolvido projetos em linha com as iniciativas adotadas pelas cidades-esponja. “As soluções não tradicionais, como jardins de chuva, telhado verde e reservatórios domiciliares, são cada vez mais empregadas”, comenta o engenheiro civil e sanitário Marcelo Obraczka, professor do curso de Engenharia Sanitária e Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), coautor de um artigo sobre jardins de chuva publicado no ano passado no periódico Mix Sustentável. “Não se pode, contudo, abrir mão completamente das soluções de drenagem urbana convencionais.”

Também na Uerj, a arquiteta Luciana Mattos dos Anjos Galdino, da Divisão de Engenharia e Infraestrutura do Instituto Nacional de Câncer (Inca), fez de seu mestrado profissional concluído em 2022 um estudo de caso para a aplicação do conceito de cidade-esponja na praça da Cruz Vermelha, no Rio de Janeiro.

“Trabalho há 13 anos no Inca, localizado no centro da cidade, entre a Lapa e a Central do Brasil. Além de ser um eixo viário, conta com muita circulação de pessoas. Mesmo com pouco volume de chuva, a região alaga e vira um caos”, diz. No estudo, ela propõe a construção de praças-piscina em duas áreas a fim de armazenar o volume excedente de água pluvial e a adoção de piso permeável, jardins de chuva e telhado verde.

Rivaldo Gomes/FolhapressPiscinão em Vila Prudente, na capital paulista, ainda durante sua fase construtivaRivaldo Gomes/Folhapress

O problema de São Paulo
A arquiteta e urbanista Adriana Sandre, fundadora do escritório de arquitetura Guajava, em São Paulo, e docente da FAU-USP, reconhece que não é fácil fazer equipamentos-esponja grandes como os construídos pelos chineses em áreas adensadas como as de várias bacias hidrográficas, a exemplo do Anhangabaú e do Pirajussara, na capital paulista. “Seria necessário desapropriar grandes áreas, e em São Paulo isso é difícil”, diz a pesquisadora, que participou da elaboração de cerca de 20 cadernos de bacias hidrográficas do município de São Paulo, com os projetos imaginados pela prefeitura.

Ela afirma ter incluído nos cadernos – instrumentos que visam a redução de inundações e alagamentos na cidade – algumas SbN descentralizadas e reservatórios anfíbios, evitando a alternativa dos piscinões de concreto. Cita como exemplo o caso previsto para o Vale do Anhangabaú, onde foram projetados poços de infiltração – instrumento que em muitas cidades é obrigatório para aprovação da planta do imóvel a ser construído –, terraços de chuva e biovaletas na avenida 9 de Julho, que passa ao lado.

Um dos projetos atuais da pesquisadora é a investigação de como lidar com os efeitos das mudanças climáticas em áreas periféricas das cidades. “Que tipo de projeto é passível de ser aplicado em favelas, muitas delas situadas em fundos de vale? Como transpor a ideia das cidades-esponja, que têm grandes áreas de recuperação, para uma de alta densidade construtiva?”, pondera Sandre, que atuou como consultora do programa Periferia Viva – Urbanização de Favelas, previsto para ser lançado em breve pelo governo federal.

Para Pellegrino, da USP, embora seja uma tarefa desafiadora, é possível fazer de São Paulo uma cidade mais esponjosa, mesmo com as áreas de várzea dos rios Tietê e Pinheiros urbanizadas. “Há um cardápio de opções, uma multiplicidade de elementos em várias escalas que podem ser usados na cidade. Cabe ao governo municipal, aos empreendedores e à população avaliar que soluções são essas e onde é possível encaixá-las”, afirma. “A ideia é não levar rapidamente e concentrar as águas nos pontos baixos. Mesmo nas antigas várzeas dos rios existem espaços que podem ser aproveitados para retenção, como canteiros, praças, parques e estacionamentos.”

Apesar de projetos pontuais em São Paulo adotarem soluções baseadas na natureza e de retenção da velocidade das águas, o movimento das obras vai na direção contrária e a infraestrutura cinza prevalece. “Conduzir as águas acelerando ladeira abaixo só aumenta a bola de neve. Essa visão ainda prevalece”, comenta Pellegrino. Rolnik, da FAU-USP, concorda. “O plano diretor de São Paulo, aprovado no ano passado, não privilegia as soluções baseadas na natureza. O complexo imobiliário-financeiro define o tipo de produto imobiliário que será feito na cidade e o político-empreiteiro define a natureza das obras públicas e das intervenções”, afirma.

Os especialistas ressaltam a importância de reverter esse cenário, já que a capital paulista se situa em áreas de cabeceira da bacia do rio Tietê, com uma complexa rede hidrológica, formada por mais de 1.500 quilômetros de pequenos córregos, parte deles canalizados e cobertos. Mesmo assim, defendem, há oportunidades de intervenção, especialmente considerando a necessidade de urbanizar favelas, muitas delas ocupando margens de rios e córregos.

“O conceito de cidade-esponja é muito importante em vários aspectos para conter inundações na Região Metropolitana de São Paulo, especialmente na capital e no ABC paulista”, diz Travassos, da UFABC, primeira autora de um artigo sobre o tema publicado em Frontiers in Sustainable Cities, em 2022. “É essencial trabalhar com a ideia de uma cidade-esponja que seja um híbrido entre soluções verdes e cinza, abrangendo desde pequenos reservatórios nos imóveis até os parques lineares, nas áreas de preservação permanente, em rios e córregos. Para isso, será necessário haver uma articulação com projetos de habitação de interesse social.”

Projeto
Territórios da água: Programa de Conservação e Recuperação de Áreas de Preservação Permanente no Município de São Paulo (no 23/10072-0); Modalidade Pesquisa em Políticas Públicas; Pesquisadora responsável Luciana Rodrigues Fagnoni Costa Travassos (UFABC); Investimento R$ 693.704,91.

Artigos científicos
MOURA, N. C. B e PELLEGRINO, P. R. M. et al. Best management practices as an alternative for flood and urban storm water control in a changing climate. Journal of Flood Risk Management. 17 jun. 2015.
LI, HUI et al. Sponge City Construction in China: A Survey of the Challenges and Opportunities. Water. 28 ago. 2017.
FLETCHER, T. et al. Suds, LID, BMPs, WSUD and more – The evolution and application of terminology surrounding urban drainage. Urban Water Journal. v. 12, n. 7, p. 525-42. jul 2014.
MENEZES, L. et al. Cidades-esponja e suas técnicas compensatórias: Uma revisão sistemática de literatura. Research Society and Development. jul. 2022.
CHIKHI, F. et al. Review of sponge city implementation in China: Performance and policy. Water Science & Technology. v. 88, n. 10, p. 2499-520. nov. 2023.
GONDIM, F. et al. Jardins de chuva: Atualizações sobre a técnica a partir de uma revisão sistemática. ¨C50C. v. 9, n. 5, p. 201-15. out. 2023.
TRAVASSOS, L. ¨C51C MOMM, S. Urban river interventions in São Paulo municipality (Brazil): the challenge of ensuring justice in sociotechnical transitions. ¨C52C. 14 jan. 2022.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *